A publicação deste artigo se deve ao honroso convite da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo, coordenada pelos ministros do Superior Tribunal de Justiça Luis Felipe Salomão, Antônio Carlos Ferreira e Humberto Martins e pelos professores Ignácio Maria Poveda Velasco, Otavio Luiz Rodrigues Junior, José Antônio Peres Gediel, Rodrigo Xavier Leonardo e Rafael Peteffi da Silva. Sem dúvida o privilégio não é maior do que a responsabilidade de ocupar este espaço frequentado pelos juristas e estudiosos da Rede. Espero que a minha contribuição seja útil.
Na doutrina italiana, com Roberto Pardolesi[1], que cunhou o termo terzo contratto no prefácio do livro de Giuseppe Colangelo[2], se passou a observar que a contratação entre duas empresas, quando uma delas é dependente economicamente da outra, reflete uma categoria de contrato que não se identifica com o contrato clássico (primeiro contrato), aquele caracterizado pela presença de partes igualmente informadas e com livre capacidade de escolha. Essa contratação também não se identifica com o contrato de consumo (segundo contrato), que é marcado pela presumida vulnerabilidade de uma das partes em razão essencialmente da deficiência de informação. Cuida-se de uma realidade diversa — um terceiro contrato (il terzo contratto) —, para a qual o regime dualista apontado não oferece resposta adequada. É um novo personagem que surge no horizonte e que deve ser visto muito proximamente[3], como parte da fenomenologia e disciplina atual dos contratos entre empresas.[4]
Em geral a doutrina hoje classifica os contratos, de forma unitária, a despeito da variação designativa, em contratos business-to-business (B2B) e business-to-consumer (B2C), contratos negociados e não negociados, contratos individuais e estandardizados, contratos paritários e não paritários, e contratos com simetria ou não de poderes, revelando, fundamentalmente, a distinção entre a contratação individual e a contratação de massa, bem como a distinção entre a contração negociada e a contração não negociada.[5]
Bem anota Giuseppe Amadio que a classificação referida, assim como a norma que regula a respectiva contratação, tem como objeto de observação a atividade (não somente a posição ou o papel das partes no negócio, quanto à modalidade do exercício da autonomia negocial) e a efetividade da contratação, considerando no plano normativo o confronto entre o contrato de direito comum e o contrato de consumo. Do ponto de vista teórico, a distinção se faz entre o contrato que é celebrado com ou sem acordo de vontades.[6]
A classificação feita pela doutrina nestes termos passa em boa medida pela forma de exercício da autonomia privada e se reflete na dualidade de tratamento da tutela contratual. Esse dualismo, entre contrato de consumo e contrato de direito comum, revela que a lei labora: (i) de um lado, com um modelo de contrato inteiramente negociado, entre partes que se encontram em condição de igualdade, e que reclama o máximo de liberdade e o mínimo de intervenção do legislador e do juiz, em favor da autonomia privada; (ii) de outro lado, com um contrato (de consumo) no qual se verifica uma disparidade de instrumentos e de informações, não negociado plenamente e marcado pela assimetria de forças, que reclama o máximo de controle do legislador, especialmente no momento formativo, e admite em grau maior a intervenção judicial.
Quando se unificou o direito privado nas codificações, o que ocorreu no Brasil com o Código Civil de 2002, o regime geral dos contratos (empresariais ou não) também foi unificado. Destacou-se desse regime geral a contratação nas relações de consumo, o que polarizou o direito contratual em duas categoriais bem definidas. Sucede que a afeição do jurista à categorização do direito o levou a perder a percepção para outras realidades não compreendias nos modelos conhecidos, o que se refletiu no paradigma do direito contratual orientador da tutela adequada.
Esses dois polos definidos no direito contratual não alcançam, seguramente, todas as categoriais contratuais que, em razão das suas especificidades, não se ajustam a esse dualismo[7]. Como exemplo da não adequação às categorias definidas, Roberto Pardolesi lembra que os contratos financeiros (bancários), embora compreendidos nas relações de consumo, devem ser regulados não só do ponto de vista da tutela do consumidor, contratante fraco e pouco informado, mas também do ponto de vista da estabilidade e segurança do sistema financeiro. Não cabe aplicar a esses contratos rigorosamente o regime das relações de consumo, diante de outro valor presente nesta relação igualmente digno de tutela. Também não é o caso de aceitar o modelo clássico liberal para regular essa contratação. Outro exemplo de Pardolesi está nos contratos relacionais, hoje bem conhecidos na doutrina brasileira, órfãos de um regime jurídico próprio, cuja regulação não pode se dar com a aplicação de regras dos contratos típicos e instantâneos, como a compra e venda, diante dos efeitos decorrentes da duração das relações entre as partes.[8]
O contrato de franchising, que tem no franqueado a parte fraca da relação, sujeita às condições previamente estabelecidas pelo franqueador, a respeito das quais há restrita margem de negociação, é outro exemplo de contrato que não se ajusta ao referido dualismo. Cabe incluir também o contrato de distribuição e os contratos de rede de empresas. A esses contratos não podem ser aplicadas indistintamente a regulação e a tutela própria dos contratos negociados, porque, embora celebrados entre empresas, é fácil perceber que um deles (por exemplo o franqueado) está em situação absolutamente diversa do ponto de vista da simetria dos poderes de negociação.
São hipóteses contratuais que não se identificam com as matrizes colocadas no sistema dualista ou, propriamente, não se identificam com as categorias de direito contratual com as quais o jurista se habituou.[9] Em comum a essas relações está a assimetria de poderes e a vulnerabilidade de uma das partes. Diversamente das relações de consumo, a assimetria de forças (entre partes empresárias) nos contratos não é necessariamente um problema jurídico se ao empresário havia alternativa e liberdade de contratação. O desequilíbrio se revela patológico para o direito somente quando decorre do abuso decorrente da dependência econômica.
Pode-se dizer, portanto, que a assimetria nas relações de consumo é de natureza informativa, porque nesse ponto reside fundamentalmente a vulnerabilidade do consumidor, enquanto nos contratos empresariais, nas situações de dependência entre empresas, a assimetria decorre, não da incapacidade de negociar, mas da falta de alternativa.
A consequência do referido binário tratamento legislativo é a fragmentação da unidade do paradigma contratual, ponto sobre o qual, como afirma Giuseppe Amadio, não se discute na doutrina. A questão que se coloca hoje é como reordenar o sistema na busca do paradigma perdido[10].
É justamente entre estes dois polos — contrato liberal clássico e contrato de consumo — que se investiga essa terra di mezzo (terra do meio), uma área intermediária na qual está o chamado terceiro contrato. A hipótese dessa figura se amolda a um contrato entre empresários com capacidade de negociação. Todavia, se verifica de um lado da relação o empresário fraco (débil), que se coloca em situação muito próxima do consumidor nas relações de consumo, quando se olha somente para a assimetria de poderes e a vulnerabilidade da parte. É uma nova categoria de contratante débil, como afirma Pardolesi.
Na próxima semana a publicação da segunda parte deste artigo aborda essa nova categoria de contrato.
Fonte: ConJur