Previamente à crise causada pelo novo coronavírus, a recuperação gradual da economia brasileira vinha sendo capaz de afastar um dos maiores problemas recentes para o mercado imobiliário: os distratos, termo utilizado pelo setor para a devolução de imóveis comprados na planta.
Dados coletados por Abrainc (Associação Brasileira das Incorporadoras Imobiliárias) e FIPE (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas) comprovam a baixa que vinha ocorrendo nas devoluções. Os indicadores revelam que 2019 registrou queda de 32,4% no volume de distratos, em relação ao ano anterior. Veja a tabela.
Elaboração: Abrainc/Fipe
Entretanto, com o novo e incerto cenário econômico decorrente do isolamento social, marcado pela diminuição das atividades e queda da renda de muitos brasileiros, o ‘pesadelo’ dos distratos volta a ser uma ameaça para a incorporação imobiliária.
O retorno do problema, inclusive, já pode ser observado em algumas prévias operacionais de incorporadoras com capital aberto no primeiro trimestre de 2020. Tenda e Helbor, por exemplo, apresentaram aumento de 93% nas unidades distratadas e de 26% no valor distratado, respectivamente. Os valores não são maiores porque há muitos pedidos para renegociar condições de pagamento.
Vale lembrar que durante outra recessão, em 2015, o setor registrou recordes históricos, com 42,5% das vendas distratadas. Entretanto, o período não continha uma regulamentação específica para os distratos, como há atualmente, e as incorporadoras arcaram com amargos prejuízos.
Aplicação da lei do distrato
A esperança do setor imobiliário diante do aumento das devoluções é justamente no amparo jurídico fornecido pela lei do distrato (Lei 13.786/18), que estabelece percentuais de retenção e devolução quando o contrato for encerrado, seja por inadimplência do comprador ou por descumprimento de obrigações pelos incorporadores.
Porém, a regulamentação – que agora será colocada à prova – ainda é controversa no âmbito jurídico. Raphael Moreira Espírito Santo, sócio da área de direito imobiliário do escritório Veirano Advogados, por exemplo, acredita que a crise econômica atual, em casos específicos, pode afetar a aplicação da lei nos tribunais.
“Ainda é difícil visualizar a aplicabilidade da norma durante a pandemia, mas vejo uma possibilidade em que ela pode ser ignorada: se a condição financeira do comprador tiver sido completamente alterada, como com a perda de emprego ou o fechamento de comércio, pode ser um argumento do contribuinte para buscar uma melhor condição na Justiça do que a determinada na lei do distrato”, diz em entrevista à Smartus.
“Contudo, a pandemia não nos coloca automaticamente em uma situação de força maior e não permite que o consumidor venha a se valer do momento para deixar de arcar com as obrigações contratuais. Tudo deve ser analisado caso a caso”, completa.
Já outro advogado especialista no tema, Rodrigo Martinez, sócio do escritório Bella Martinez Advogados, não enxerga uma relação de causa e efeito entre a pandemia da Covid-19 e a aplicabilidade da lei do distrato.
“Acredito que não haja impacto, afinal, a lei não impediu que ocorram os distratos, apenas estabeleceu novos percentuais que o comprador do imóvel deve receber caso haja rescisão de contrato. Ele ainda pode desistir, mas vai perder uma parte do dinheiro que pagou”, afirma em entrevista à Smartus.
“Apesar do paternalismo jurídico que existe no Brasil, o Judiciário também deve levar em conta o perfil da incorporadora, que é tão vítima da situação quanto o consumidor. É injusto que as incorporadoras sejam mais prejudicadas em função de um problema mundial. Não há porque pesar para um lado da balança”, complementa.
Martinez garante ainda que as decisões recentes do Judiciário têm respeitado integralmente a lei do do distrato, citando como exemplo os percentuais e as hipóteses específicas. “Antes, era muito variável e esta decisão dependia muito do juiz”, reitera o especialista.
Importância da renegociação de contratos
Mesmo com opiniões distintas sobre a aplicação do lei do distrato durante a pandemia causada pelo novo coronavírus, ambos os especialistas citam a importância da renegociação de contratos.
Para Moreira, as partes têm o dever de renegociar antes que se procure a Justiça: “É algo que deve ser feito antes de qualquer outra providência, uma vez que o contrato foi celebrado em um cenário que se alterou. Posteriormente, caso não haja acordo, a parte que se sentiu prejudicada pode procurar o Judiciário”.
Já Martinez entende que a renegociação pode ser a melhor solução para as incorporadoras: “Elas querem evitar ao máximo o distrato, pois também são prejudicadas, tendo que desembolsar um capital que seria utilizado na construção do empreendimento. Por isso, devem entender a situação e criar um período de maior flexibilidade nos pagamentos a fim preservar os contratos”.