É comum vermos vendedor de imóvel sujeito a processo cível no qual o juiz, provocado pelo credor, declara a ineficácia da venda ocorrida no curso da ação, restando prejudicado o comprador. O fundamento para a declaração costuma consistir no que se conhece como fraude à execução, resumida na disposição da totalidade ou de parte do patrimônio que o devedor pratica para frustrar a satisfação do credor.
A fraude à execução, prevista no artigo 792 do Código de Processo Civil de 2015, dá-se em diferentes casos e um dos que mais geram controvérsia é o havido quando o devedor aliena seu imóvel na pendência de processo que não conta com averbação sua ou de ato constritivo dele proveniente (como a penhora) na matrícula imobiliária.
Com esse tipo de averbação, fica fácil para o credor alegar que o devedor alienou a coisa em fraude à execução e que o comprador não tomou cuidados. Afinal, a averbação gera a presunção de que terceiros conhecem a restrição a que submetido o proprietário em relação aos atos de disposição do seu imóvel, fazendo com que se aplique a primeira parte da súmula 375 do Superior Tribunal de Justiça, segundo a qual “o reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente”.
Por sua vez, se não houver a averbação, surgem dúvidas acerca de quem possui o ônus de produzir provas que amparem suas razões.
Há quem diga que, faltando a averbação, o credor, com espeque na segunda parte da súmula, tem de provar a má-fé do comprador, bem como há quem impute ao adquirente o ônus de demonstrar a sua boa-fé, a despeito do verbete.
O STJ mesmo, quando vigia o CPC de 1973, proferiu acórdão frisando que “o inciso II, do artigo 593, do CPC, estabelece uma presunção relativa da fraude, que beneficia o autor ou exeqüente, razão pela qual é da parte contrária o ônus da prova da inocorrência dos pressupostos da fraude de execução”, assim como que “tem o terceiro adquirente o ônus de provar que, com a alienação do imóvel, não ficou o devedor reduzido à insolvência, ou demonstrar qualquer outra causa passível de ilidir a presunção de fraude disposta no artigo 593, II, do CPC, inclusive a impossibilidade de ter conhecimento da existência da demanda, apesar de constar da escritura de transferência de propriedade do imóvel a indicação da apresentação dos documentos comprobatórios dos feitos ajuizados em nome do proprietário do imóvel”. O aresto foi proferido no julgamento em 23/8/2007 do Recurso Especial 655.000/SP pela 3ª Turma do STJ, sob a relatoria da ministra Nancy Andrighi.
Esse entendimento está em julgados recentes, por exemplo, do Tribunal de Justiça de São Paulo (Apelação Cível 1004391-50.2020.8.26.0011; relator: João Pazine Neto; 3ª Câmara de Direito Privado; julgamento em 26/11/2020).
Percebamos que, para a vertente que considera o adquirente detentor do ônus de comprovar a sua boa-fé, não basta a matrícula estar “limpa”. Isto é, ainda que a matrícula do imóvel não conte com a averbação da penhora ou da ação, o adquirente tem de se precaver mais, aconselhando-se que obtenha certidões de distribuição de processos em nome do vendedor.
Então, se o adquirente visualiza o apontamento de determinado processo contra o vendedor, deve se certificar de que o feito não apresenta riscos à compra e venda. Sendo irrelevante, para parte da jurisprudência, a inexistência de averbação do feito ou de penhora na matrícula.
Realmente, como dito, há quem afirme a presunção de boa-fé do adquirente de imóvel em cuja matrícula não está averbado o processo ou ato constritivo dele oriundo. O STJ, por sua Corte Especial, no julgamento em 20/8/2014 do Recurso Especial Repetitivo 956.943/PR, de relatoria do ministro João Otávio de Noronha, adotou essa linha, acrescendo que, para a configuração da fraude, também se faz necessária a citação válida do vendedor na actio.
A Lei nº 13.097/2015, nos artigos 54 a 58, dá guarida a essa presunção, pelo princípio da concentração dos atos registrais na matrícula.
Entretanto, chama a atenção a insegurança jurídica representada pelos julgados acima mencionados.
Apesar da tese consolidada em 2014 sob o rito dos recursos especiais repetitivos, a qual até vem sendo aplicada pelos demais tribunais do país, não temos como nos esquecer de que, em anos posteriores, acórdãos sobrecarregaram adquirentes com o ônus de comprovarem sua boa-fé mesmo com a matrícula sem averbações.
A questão, que diz respeito ao artigo 792, IV, do CPC/2015 (artigo 593, II, do CPC/1973), vai mais longe, pois sua redação nos orienta a falar que, para a consumação da fraude, a ação em princípio impeditiva da alienação do imóvel pelo devedor deve ser “capaz de reduzi-lo à insolvência“.
Contudo, não é tarefa simples mensurar a capacidade a que alude o artigo 792, IV, pelo que, acarretando o Judiciário dúvida em torno da presunção de boa-fé do adquirente de imóvel que parecia estar albergada pelo REsp nº 956.943/PR, ele deve diligenciar bastante na análise da viabilidade da aquisição. Inclusive por força do parágrafo 2º do artigo 792, que para muitos não deixa de obrigá-lo a comprovar que foi cauteloso na aquisição, estatuindo que, “no caso de aquisição de bem não sujeito a registro, o terceiro adquirente tem o ônus de provar que adotou as cautelas necessárias para a aquisição, mediante a exibição das certidões pertinentes, obtidas no domicílio do vendedor e no local onde se encontra o bem”.
Fonte: https://www.conjur.com.br/2021-jul-04/opiniao-fraude-execucao-inseguranca-compra-imoveis