Moradores de São Paulo que receberam bens por doação ou herança no exterior têm conseguido, por meio de ações judiciais preventivas, impedir a Fazenda do Estado de cobrar ITCMD – o imposto que incide sobre as transmissões e doações de bens e direitos. Eles evitam, dessa forma, a aplicação de autos de infração, que incluem multa, e se livram de ter que garantir o valor do pagamento para poder discutir tais cobranças na Justiça.
Essa é uma briga antiga no Estado. A Fazenda usa a Lei estadual nº 10.705, de 2000, para cobrar o imposto. Já os contribuintes alegam que a Constituição Federal determina, no artigo 155, que tal cobrança depende de lei complementar federal e que essa legislação nunca foi editada. Não poderia, então, o Estado, por meio de uma lei própria, ditar a regra.
Já há manifestação do Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP) sobre o tema. Os desembargadores, em 2011, declararam a cobrança de ITCMD sobre doações e heranças recebidas no exterior como inconstitucional.
O Estado recorreu e o caso, hoje, está no Supremo Tribunal Federal (STF). Os ministros reconheceram a repercussão geral em 2015, a Procuradoria-Geral da República (PGR) já se posicionou contra o imposto, mas a matéria ainda aguarda o julgamento do plenário da Corte. Trata-se do RE nº 851.108.
Sem a decisão, no entanto, a Fazenda de São Paulo continua autuando os contribuintes toda vez que percebe as doações e transmissões de bens nas declarações de Imposto de Renda e verifica que o imposto não foi recolhido. O Estado aplica a alíquota de 4% sobre os valores envolvidos e geralmente inclui multa pelo atraso do pagamento.
Essas autuações demandam discussão no Tribunal de Impostos e Taxas (TIT), que julga de forma administrativa os recursos dos contribuintes paulistas, e sobre essa questão específica, afirmam advogados, as decisões são majoritariamente favoráveis à incidência do ITCMD.
É para evitar todo esse processo que eles têm se antecipado às autuações e ingressado com as ações preventivas – por meio de mandado de segurança ou pedidos de tutela. “E eles vêm sendo atendidos. A decisão do TJ [que declarou a cobrança inconstitucional] é vinculante dentro do próprio tribunal”, contextualiza o advogado Daniel Franco Clarke, do escritório Siqueira Castro.
Há ao menos cinco decisões recentes nesse sentido. A advogada Camila Xavier, do escritório L.O. Baptista, atuou em um desses casos. O cliente dela havia recebido como herança da mãe, que morava no Reino Unido, títulos, dinheiro, obras de arte e imóveis que somavam cerca de R$ 20 milhões. Se tivesse que pagar o ITCMD, seriam aproximadamente R$ 800 mil direcionados ao governo paulista.
Ela entrou com um pedido de tutela para impedir a cobrança. “Essa medida evita que o contribuinte tenha que garantir o valor cobrado pela Fazenda mediante um depósito judicial, por exemplo, ou que sofra alguma constrição patrimonial”, diz Camila Xavier. O pedido foi aceito pela juíza Ana Luiza Villa Nova, da 16ª Vara da Fazenda Pública da Comarca de São Paulo (processo nº 1037128-48.2018.8.26.0053).
Existem decisões favoráveis aos pedidos dos contribuintes também na segunda instância. Dois irmãos conseguiram, na 13ª Câmara de Direito Público do TJ-SP, o direito de não recolher ITCMD sobre uma doação feita pelos pais. Tratava-se de participação societária em três empresas nas Ilhas Virgens Britânicas.
“A existência de vácuo legislativo não confere ao Estado a possibilidade de exercer a competência legislativa plena em matérias que prescindem de lei complementar nacional”, afirmou, no voto, o desembargador Ricardo Anafe, ao atender o pedido do contribuinte (processo nº 1060201-83.2017.8.26.0053).
Há decisão semelhante na 10ª Câmara de Direito Público. A contribuinte havia ingressado com mandado de segurança para reconhecer a inexigibilidade do imposto sobre valores recebidos como herança do pai, que morava na França.
A quantia estava depositada em um banco do país e, segundo o relator do caso, desembargador Antonio Celso Aguilar Cortez, mesmo “ao transferir o montante para o Brasil a herdeira não poderia ser obrigada a quitar o ITCMD para obter a liberação do dinheiro” (processo nº 1000693-46.2016.8.26.0053).
Advogados chamam a atenção que essa discussão entre Fazenda e contribuintes pode ficar ainda mais acirrada por causa do Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (RERCT), o programa do governo federal que fixava percentuais de alíquota de imposto e multa e livrava os contribuintes com bens no exterior, até então não declarados, de responderam a ações criminais.
No artigo 7º da Lei nº 13.254, que instituiu o RERCT, consta que a Receita Federal e o Banco Central não poderiam compartilhar as informações decorrentes da regularização com municípios e Estados. O problema, afirmam os especialistas, é que apesar de existir essa previsão, a maioria dos Estados têm convênio firmado com a Receita Federal para acessar as declarações de Imposto de Renda dos contribuintes. Se constar doação ou herança, acrescentam, é certo que haverá risco de autuação.
Daniel Franco Clarke, do escritório Siqueira Castro, diz que a discussão ficou ainda mais acirrada porque a Secretaria da Fazenda de São Paulo, em abril do ano passado, publicou uma norma sobre o assunto – o Comunicado CAT nº 9. Tratava especificamente sobre o ITCMD em relação aos recursos abrangidos no RERCT, com instruções de preenchimento das declarações e informações sobre o recolhimento do tributo.
Para Leo Lopes, sócio do FAS Advogados, o posicionamento do Estado em relação aos valores envolvidos no RERCT, além de indevido, por não haver lei complementar que permita a cobrança, é inoportuno. “Muitas pessoas só aderiram ao programa porque existia a promessa de sigilo fiscal”, diz. E, no caso de autuação, acrescenta, o contribuinte acaba tendo que se expor judicialmente. “Para discutir uma cobrança que não é devida e por um ente que sequer fez parte do RERCT na sua origem.”
A Procuradoria-Geral do Estado foi procurada pelo Valor, mas não deu retorno até o fechamento da edição.
FONTE: Valor Econômico